22 março 2006

Mais Tarde

Mais tarde o azedo do limão fará a limonada
e a picada da abelha se perderá na doçura do mel.
Mais tarde a rocha mais dura se reconhecerá na areia e a água, tão branda,
se juntará à geleira que faz um continente.
Mais tarde o calor do sol se abrigará na noite estrelada
e a montanha mais alta será pó.
Mais tarde os filhos herdarão os pais,
e sua velhice será assim como uma infância ao contrário que escolherão ou não cultivar.
Mais tarde as sementes serão flores num jardim
e a esperança será um fruto igualitário.
Mais tarde a guerra será só vergonha, talvez.
Só o amor fará tudo ser outra vez.
Só o amor fará tudo cedo outra vez.

Poesia e Ilustração: Silvio Vinhal

21 março 2006

Palavras

Palavras,
pás que lavram
as terras do ventre.

Vê? Entre...

lavras,
palavras
que se entrelaçam
mentira
palavras que se despedaçam
mentira


palavras que sempre se despem
mentira
palavras que se despedem
                                                                                   mentira
                                                                                   e vão em busca de nada.



Poesia e ilustração: Silvio Vinhal

17 março 2006

Óbvio

Pensei em paixão e o coração soprou a rima.
Na verdade era sentimento,
forte compressão dentro do peito,
como um balão a inflar
dentro da gente.
Não arrisco o óbvio,
apaixonar-se é dar asas ao desconhecido,
é encontrar prazer no outro,
é deitar-se ao abrigo,
enquanto a tempestade ruge e apavora
quem está lá fora.
Poesia e ilustração: Silvio Vinhal

15 março 2006

O Inevitável



A beleza e a dor andam juntas nesses dias como se fossem antigas companheiras de botequim.
O cálice amargo que trago nas mãos traz um deslumbramento que talvez seja passageiro,
mas que talvez traga, e deve trazer, dias ainda mais difíceis.

Quem entenderia?

O belo é apenas o estopim, o chamariz para um mundo novo e inexplorado, e entendo que meu papel aqui não é de desfrute, mas missão.

Quem entenderia?


Poema e ilustração: Silvio Vinhal

10 março 2006

Construção


Laje transparente
de sentimento lúcido.
Concreto cristalino
de emoções recentes.

Tijolo leve
de suaves lembranças.
Argamassa clara
de breves saudades.

Reboco firme
de fugidios sonhos.
Revestimento perfeito
de profunda liberdade.
E cobertura resistente
de resoluto pensamento.

Vêm concluir enfim
o monumento sólido
(a sólida estrutura)
da frágil criatura
de humanas esperanças!

Poema e ilustração: Silvio Vinhal

08 março 2006

Refúgio

Olhei pela vidraça dos meus olhos o horizonte longe, lá fora.
Cerrei sobre ela as cortinas do tempo, pálpebras cansadas do agora.
Abri a porta da minh´alma ao gritos ansiosos do lamento.
Deixei que fosse embora a esperança, ficando vazia a sala do meu sentimento.

Em desespero refugiei-me no quarto escuro
da saudade antiga,
da saudade passageira,
da saudade extinta.

Longos corredores,
labirintos,
portas fechadas,
loucura.

Poema: Silvio Vinhal Ilustração: Gravura do mesmo autor

12 fevereiro 2006

Três poeminhas / ou seriam poemeus?



Precaução
Minha vida já passou do meio dia.
Não dá mais pra tomar esse sol da tarde
Impunimente.

BH 5:25 3-3-2005 Cabeça AceleradaO dia amanheceu
E eu nem dormi!
Eita cabeça acelerada, Que não quer sonhar, Mas não se cansa
(como eu me canso)
De urdir.
BH 5:50 3-3-2005

Um Risco NovoNem tudo são flores,
Mas a gente inventa Um risco novo,
E até corre, algumas vezes,
O risco de florescer.

BH 5:35 3-3-2005 - Poemas - Silvio Vinhal Ilustrações: Detalhes de naquim, do mesmo autor

11 fevereiro 2006

Insônia


A fresta de luz que entra pela minha janela é testemunha das minhas noites maldormidas,
e o ruído dos trens que brincam nos trilhos distantes preenche a tarde longa e inquieta que ainda habita em mim.
Essa fresta de luz é o meu pensamento aceso divagando sobre conversas do dia ou em sonhos que sonho acordado e que nunca se realizarão.
Essa fresta de luz é uma fogueira que me queima toda noite e lembra que o tempo urge e eu ainda não me encontrei.


Poesia: Insônia - Silvio Vinhal
Ilustração: Colagem do mesmo autor

A Viagem

Na viagem de volta eu viajei além da janela, observando tapetes verdes sob uma manhã ainda tenra.
A luz do sol, oculta, se pronunciava em tons de laranja difuso, manchando a seda perolada do céu daquela hora.
A lua relutava em ir embora, enquanto o sol se espreguiçava atrás dos lençóis do horizonte.
Meu olhar, levado pelo movimento do automóvel, percorria o topo das árvores. Movimento e êxtase enchiam meu peito.
Eu respirava o ar frio da manhã, como quem aspirava essa beleza toda.
Acho que era paz.

Poesia: A Viagem - Silvio Vinhal
Ilustração: Detalhe de um guache, do mesmo autor

10 fevereiro 2006

Formas de Amar

Quem ama o corpo ama o momento, é como o incêndio vermelho
de um sol derradeiro que agoniza no céu.

Quem ama a mente recebe as águas de um rio límpido e inesgotável
que se renova e cumpre a missão de saciar a sede humana.
Quem ama o ser que mora no outro é parte do sol que incendeia,
é parte do rio que nutre a alma, completa a constelação das estrelas eternas,
e tudo ao mesmo temo sente e partilha, num fogo que consome e cria.
Poesia: Formas de Amar - Silvio Vinhal
Ilustração: Gravura Tempo I - do mesmo autor

09 fevereiro 2006

Tudo Bem


Minha tez no espelho
Não tão clara,
Não tão macia,
Não tão lisa.

Aquele menino continua lá,
Encapsulado,
Olhando através dos meus olhos
E segurando as grades
Da minha vida adulta.

Tudo está bem,
Embora as cores se encantem
Com os matizes gris e prata.
E tudo vá ficando (um pouquinho apenas)
Mais pálido.



Poesia: Tudo Bem - Silvio Vinhal - BH 3/11/2004 16:02Foto: Claudio Moreira

Grito


Stop!
Entre o instante e o instante
o que subsiste aqui é um grito.

Minha farinha de osso,
os meus cacos que junto todos os dias
e sem queixa
continuo a carregar.

O grito não é de lamúria
é pra demarcar território.

Poesia: O Grito - Silvio Vinhal
Ilustração: Detalhe de gravura, do mesmo autor

Fogo de Gelatina em Pó


Um dia minha irmã, Sandra Vinhal, escreveu essa frase enigmática numa poesia que, anos mais tarde, musiquei e denominei "O Enigma" . (a letra toda da música - a poesia dela sofreu intervenções minhas - pode ser lida em www.silviovinhal.cjb.net)

"Por ser verdade
o belo é belo
e as árvores trazem em si
todo o ardor de chamas
vermelhas e azuis
fogo de gelatina em pó."

Seus versos foram muito felizes, porque dizer que o belo é belo porque é verdadeiro, é uma definição inusitada, mas muito boa.
E ela continua dizendo que: "as árvores trazem em si fogo de gelatina em pó".
A força dessa imagem poética pra mim foi arrebatadora.
Olhar as árvores como fogo factível, é deslumbrar nelas a força do fogo, ainda que vivas, latejantes, verdes.
O fogo é transformador, nem bom nem mal em si mesmo. É, sobretudo, necessário.
Somos nós que, diante da beleza, podemos contemplar sem destruir, ou optar pela mentira, pelo feio, pela destruição em vão, sem propiciar vida, sem aquecer, apenas como um espetáculo pirotécnico vazio.
Amazônias - florestas humanas inteiras - têm sido destruídas todos os dias.
Esse blog é o registro quixotesco de um romântico do século XXI. Imagens, poemas e pensamentos nem sempre claros, mas sempre sinceros.
Achei o título adequado porque é enigmático, é instigante e, sobretudo, remete a algo que está por acontecer.
Eu ofereço essa caixinha nova de gelatina, sabor fogo, mas é você quem decide se dela provará ou não.
__ Dissolvo em água quente?